Eu
sou, ironicamente, o lado frágil desta questão...mais precisamente, o fio
condutor de dois lados que não têm lado, tal qual as moléculas dispersas na
ebulição. Nossa missão é acomodar interesses em um ambiente cuja definição
"inferno" se assemelha a um filme noir macabro... A paleta de
sentimentos e adjetivos à minha disposição parece insuficiente para registrá-lo
em toda sua amplitude... Lembro-me de ter lido, em algum lugar, uma reflexão
acerca do fato de que muitos conceitos não podem ser compreendidos pelo ser
humano, dada a limitação de sua linguagem. Aparentemente, nossa pobreza de
vocabulário é o resultado de uma condição intelectual e moral insuficientemente
evoluída, e lamento que isto soe verdadeiro... Se a mim fosse dado o poder de
expandir o alcance das palavras, torná-las tão ou mais letais do que meu fuzil,
este breve relato me tornaria um herói de guerra.
Acabo de voltar de uma
patrulha de rotina. Nossa base é um oásis no deserto caótico que se instaurou
na capital. O presidente foi assassinado em circunstâncias misteriosas,
pretexto mais do que suficiente para acender o barril de pólvora desta
pseudo-democracia. Rebeldes tomaram o poder, reivindicando uma suposta
supremacia de uma etnia que se dizia oprimida pelo governo anterior. O
resultado? Um banquete permanente para os abutres, sempre rodopiando pelo céu,
mesmo uma semana após encerrada a guerra - um massacre que se converteu em
genocídio e resultou na morte de aproximadamente um milhão de pessoas, a
maioria a golpes de facão.
Eu sei, parece estranho
que ao tentar descrever tudo que vi - e principalmente após minha
divagação acerca da pobreza de linguagem para tentar definir o indefinível -
simplesmente me aproprie de uma metáfora tão rasa. Pois será esta a visão a
qual forçarei minhas sinapses, sempre que o pesadelo do terror vier a me
atormentar nos dias que se seguirão. Nada mais do que uma reação mecânica de
preservação da minha sanidade mental, pois quando aqui cheguei, meus olhos se
recusavam a ver as centenas de cadáveres que se empilhavam nas ruas, todos os
dias. Instintivamente, eu erguia minha visão para o alto e, invariavelmente, lá
estavam as aves carniceiras em seu ritual de preparação - autênticas e
soberanas comensais da morte.
Hoje, compreendo porque
dizem que o primeiro sentimento de reação à dor é a negação. Enquanto pudemos
ignorar o caos ao nosso redor, os dias eram suportáveis. Agora, na minha
companhia, somos quatro soldados tomando medicamentos tarja preta. Um paliativo
que se tornou precipitadamente imperativo, depois que um companheiro
tentou dar cabo da própria vida com granadas, as quais felizmente não
detonaram - estavam “ocas”, e nem mesmo os oficiais mais graduados sabiam
disso.
Os pesadelos não vão embora.
Todos buscam, no trabalho braçal, uma terapia para manter a cabeça ocupada e
deixar o corpo tão fatigado que não permita sequer uma lembrança do que temos
testemunhado, quando cerrarmos os olhos à noite. O problema é que o sono por aqui nunca
é reparador. Quando não são ecos de metralhadoras ou bombas, são os caminhões
trazendo feridos, principalmente mutilados. Penso nas crianças órfãs que
chegam. Elas não choram nem gritam como os adultos, principalmente as mulheres.
Por trás da crosta da aparência catatônica, elas estão mortas por dentro. Viram
familiares, amigos e vizinhos serem fatiados com requintes de crueldade ímpar.
Umas poucas, já recuperadas, passeiam pelas enfermarias fazendo absolutamente
nada, olhando para o nada. São como zumbis, vagando sem propósito e
atrapalhando a circulação dos médicos.
Talvez eu também esteja me
tornando um morto-vivo. Justamente por temer perder minha capacidade de
indignação e não deixar que esse cenário de loucura se torne trivial, hoje
finalmente baixei a guarda e forcei-me a observar, sem desvios, o saldo final
do conflito.
Nosso trabalho é proteger
os comboios carregados com alimentos, roupas e remédio não apenas dos últimos
focos esparsos de resistência rebeldes; mas da própria população. A fome os
torna irracionais, e o resultado são caminhões alvejados e cargas saqueadas,
principalmente nos subúrbios.
Estivemos no centro da
cidade hoje. Os corpos estão espalhados aleatoriamente, e os sobreviventes
parecem pouco propensos a organizar sepultamentos. Esta tarefa sobra para os
militares (eu me incluo entre eles) e voluntários. Um fotógrafo nos acompanha,
disparando sua máquina para todos os lados...nas calçadas, nas placas de
estabelecimentos comerciais destruídos, nas janelas, árvores e, como pudemos constatar
mais tarde, também no rio Nyabarongo. Cadáveres e mais cadáveres. As mãos
começam a formigar, gélidas. O coração dá socos na cavidade torácica. Faço uma
pausa para mais uma dose de Rivotril. Prosseguimos novamente, sempre atrás
do comboio.
Ao virarmos em uma rua,
somos obrigados a descer e retirar os corpos das ruas para os veículos
passarem. Pego uma máscara. Começo retirando dois homens, o primeiro de
estatura mediana. O segundo, muito mais alto e pesado, me obriga a pedir ajuda.
Coloco-os encostados nos escombros do que, suponho, seria um bar ou mercearia.
Ali mesmo, estatelada de bruços, está uma menina de mais ou menos 9 anos de
idade. Tem os membros amputados. Provavelmente, sangrou até morrer. Cometo o
erro de virá-la e percebo que o homicídio teve pitadas de sadismo. A pequena
tem, pela ordem, a orelha direita, a mão esquerda e o pé direito amputados,
numa “lógica” seqüencial macambúzia. Minha visão fica turva... Impulsos
elétricos disparam, e sinto as veias da minha cabeça nitidamente latejarem...o
ímpeto de fúria assassina que me acomete só é obliterado ao perceber as náuseas
do fotógrafo, às minhas costas. Levanto-me para ajudá-lo a se recompor e
percebo, do outro lado da calçada, o motivo da ojeriza. Ali se encontra o corpo
de uma mulher, cujas mãos foram cortadas (mas não decepadas). As marcas da
violência sexual estão bem visíveis.
Durante a fase mais
crítica da guerra, levavam à nossa enfermaria mulheres que haviam sido
sodomizadas por até dez homens, muitas vezes simultaneamente. Chegavam urrando
de dor, com hemorragias internas e os médicos utilizavam todo o estoque de
morfina à disposição. Cirurgias de reconstrução vaginal eram rotineiras. Vi
tudo isso com meus próprios olhos, e achei que estivesse me acostumando. No
entanto, o quadro desta vez é indubitavelmente mais chocante. A moça, não mais
que 25 anos, foi violentada à maneira típica que descrevi, com um detalhe:
estava grávida. Aparentemente, os assassinos abriram-lhe a barriga, deixando um
bebê natimorto preso às entranhas, pela placenta. Olho para os lados. Toda a
companhia tenta demonstrar firmeza, mas os movimentos de maxilares
protuberantes e intermitentes denunciando um choro travado nos traem. Os olhos
ficam úmidos. Ninguém diz uma palavra.
Quando terminamos de
desimpedir a via, escuto um ganido dentro de uma casa bombardeada. Dois
soldados também. Dou o sinal e recebo a resposta de que terei cobertura. Entro
nos escombros e eles me seguem. Depois da cena da mulher grávida, não há mais
pico de adrenalina, e eu me sinto anestesiado. Acendo uma lanterna para afastar
a penumbra e percebo, ao fundo do casebre, um pequeno corpo inerte, coberto de
poeira, e um cachorro ao seu lado, deitado.
O animal levanta a cabeça
e, ao ver minha aproximação, rosna ameaçadoramente. Meu colega atrás de mim faz
a mira. Eu o impeço no ato. Chego mais perto, e ofereço a minha mão para que
ele possa cheirá-la - nunca tive medo de cachorros. Ele parece compreender meu
sinal de trégua, permitindo minha aproximação. Faço um afago e ele abaixa a
cabeça, sem desgrudar os olhos de mim. Percebo que ele guarda uma criança, mas
esta não foi amputada. Provavelmente morreu pela bomba. Tomo o pulso dela.
Morta, realmente. Dou o sinal ao meu companheiro, que dá meia-volta. Tomo o
cachorro em meus braços, sem que ele proteste, e o carrego para fora. Está
ferido em uma das patas, mas não parece grave. Ignoro o aviso do sargento, de
que o regulamento não permite animais de estimação na base. A presença do
cãozinho é um sopro de vida na missão, e a resistência do oficial responsável
se encerra definitivamente quando a companhia o cerca e os voluntários o mimam,
oferecendo água e um pouco de comida.
Quando os motores ligam e
prosseguimos, o animal imediatamente se põe a latir e ganir, olhando para os
escombros que guardava há minutos. Ignoramos, mas o desespero aumenta e ele se
torna irrequieto e verdadeiramente hostil. A lealdade daquele vira-lata comove
a todos, e sem qualquer objeção, voltamos para buscar o corpo da criança que
estava sob sua tutela e a levamos para a base, para ser enterrado.
Depois de pedir a um dos
médicos que examine a pata do novo mascote, vou direto para o chuveiro, o meu
local preferido de relaxamento desde que fui impedido de consumir álcool por
conta dos antidepressivos...Por mais que esfregue, parece que o sangue não sai
das minhas mãos...tento amenizar, cortando as unhas no limite do possível, mas
sempre que olho novamente, elas me parecem rubras. Não sei como explicar, mas
também parece não haver perfume que me livre do cheiro putrefato e carregado
das ruas de Kigali, imersas em sangue, cinzas e lágrimas. Aparentemente, meu
olfato desenvolveu uma percepção sensorial indelével; correlacionada aos pesadelos
que vivi nestes últimos meses.
À noite, com o cachorro
afundado no meu colo após o pequeno funeral organizado para seu ex-dono anônimo
(no qual ele fez questão de participar), mal consigo participar da acalorada
discussão que se formou ao meu redor, entre soldados, voluntários e ruandeses,
sobre o nome que irá batizá-lo. A lembrança do pior dia da campanha me faz
olhar para o animalzinho, aparentemente tão frágil, e que tantas lições nos
ensinou hoje...lealdade...coragem...amor incondicional, seja lá qual fosse a
etnia ou condição social e intelectual da criança que ele tão zelosamente
guardava...Sinto calafrios ao me dar conta de que ele desperta, em mim, a
repugnante vergonha de ser quem - ou o quê - sou. Neste momento, eu me
pego a invejar e admirar o cãozinho ruandês, tal qual um aprendiz o faz com seu
mestre. “Renuncio à minha condição de homo sapiens, quero ser um
cachorro”.
Levanto-me em seguida,
deixando-o com uma das enfermeiras que ali estão, e me despeço para o ritual
noturno diário, de remédios e choros escondidos debaixo do travesseiro. Eu apenas
rezo para não sonhar... nem me tornar um morto-vivo.



