27 de jul. de 2010

Sobre Abutres e Cães


Eu sou, ironicamente, o lado frágil desta questão...mais precisamente, o fio condutor de dois lados que não têm lado, tal qual as moléculas dispersas na ebulição. Nossa missão é acomodar interesses em um ambiente cuja definição "inferno" se assemelha a um filme noir macabro... A paleta de sentimentos e adjetivos à minha disposição parece insuficiente para registrá-lo em toda sua amplitude... Lembro-me de ter lido, em algum lugar, uma reflexão acerca do fato de que muitos conceitos não podem ser compreendidos pelo ser humano, dada a limitação de sua linguagem. Aparentemente, nossa pobreza de vocabulário é o resultado de uma condição intelectual e moral insuficientemente evoluída, e lamento que isto soe verdadeiro... Se a mim fosse dado o poder de expandir o alcance das palavras, torná-las tão ou mais letais do que meu fuzil, este breve relato me tornaria um herói de guerra.

Acabo de voltar de uma patrulha de rotina. Nossa base é um oásis no deserto caótico que se instaurou na capital. O presidente foi assassinado em circunstâncias misteriosas, pretexto mais do que suficiente para acender o barril de pólvora desta pseudo-democracia. Rebeldes tomaram o poder, reivindicando uma suposta supremacia de uma etnia que se dizia oprimida pelo governo anterior. O resultado? Um banquete permanente para os abutres, sempre rodopiando pelo céu, mesmo uma semana após encerrada a guerra - um massacre que se converteu em genocídio e resultou na morte de aproximadamente um milhão de pessoas, a maioria a golpes de facão.

Eu sei, parece estranho que ao tentar descrever tudo que vi - e principalmente após minha divagação acerca da pobreza de linguagem para tentar definir o indefinível - simplesmente me aproprie de uma metáfora tão rasa. Pois será esta a visão a qual forçarei minhas sinapses, sempre que o pesadelo do terror vier a me atormentar nos dias que se seguirão. Nada mais do que uma reação mecânica de preservação da minha sanidade mental, pois quando aqui cheguei, meus olhos se recusavam a ver as centenas de cadáveres que se empilhavam nas ruas, todos os dias. Instintivamente, eu erguia minha visão para o alto e, invariavelmente, lá estavam as aves carniceiras em seu ritual de preparação - autênticas e soberanas comensais da morte.

Hoje, compreendo porque dizem que o primeiro sentimento de reação à dor é a negação. Enquanto pudemos ignorar o caos ao nosso redor, os dias eram suportáveis. Agora, na minha companhia, somos quatro soldados tomando medicamentos tarja preta. Um paliativo que se tornou precipitadamente imperativo, depois que um companheiro tentou dar cabo da própria vida com granadas, as quais felizmente não detonaram - estavam “ocas”, e nem mesmo os oficiais mais graduados sabiam disso.

Os pesadelos não vão embora. Todos buscam, no trabalho braçal, uma terapia para manter a cabeça ocupada e deixar o corpo tão fatigado que não permita sequer uma lembrança do que temos testemunhado, quando cerrarmos os olhos à noite. O problema é que o sono por aqui nunca é reparador. Quando não são ecos de metralhadoras ou bombas, são os caminhões trazendo feridos, principalmente mutilados. Penso nas crianças órfãs que chegam. Elas não choram nem gritam como os adultos, principalmente as mulheres. Por trás da crosta da aparência catatônica, elas estão mortas por dentro. Viram familiares, amigos e vizinhos serem fatiados com requintes de crueldade ímpar. Umas poucas, já recuperadas, passeiam pelas enfermarias fazendo absolutamente nada, olhando para o nada. São como zumbis, vagando sem propósito e atrapalhando a circulação dos médicos.

Talvez eu também esteja me tornando um morto-vivo. Justamente por temer perder minha capacidade de indignação e não deixar que esse cenário de loucura se torne trivial, hoje finalmente baixei a guarda e forcei-me a observar, sem desvios, o saldo final do conflito.

Nosso trabalho é proteger os comboios carregados com alimentos, roupas e remédio não apenas dos últimos focos esparsos de resistência rebeldes; mas da própria população. A fome os torna irracionais, e o resultado são caminhões alvejados e cargas saqueadas, principalmente nos subúrbios.

Estivemos no centro da cidade hoje. Os corpos estão espalhados aleatoriamente, e os sobreviventes parecem pouco propensos a organizar sepultamentos. Esta tarefa sobra para os militares (eu me incluo entre eles) e voluntários. Um fotógrafo nos acompanha, disparando sua máquina para todos os lados...nas calçadas, nas placas de estabelecimentos comerciais destruídos, nas janelas, árvores e, como pudemos constatar mais tarde, também no rio Nyabarongo. Cadáveres e mais cadáveres. As mãos começam a formigar, gélidas. O coração dá socos na cavidade torácica. Faço uma pausa para mais uma dose de Rivotril. Prosseguimos novamente, sempre atrás do comboio.

Ao virarmos em uma rua, somos obrigados a descer e retirar os corpos das ruas para os veículos passarem. Pego uma máscara. Começo retirando dois homens, o primeiro de estatura mediana. O segundo, muito mais alto e pesado, me obriga a pedir ajuda. Coloco-os encostados nos escombros do que, suponho, seria um bar ou mercearia. Ali mesmo, estatelada de bruços, está uma menina de mais ou menos 9 anos de idade. Tem os membros amputados. Provavelmente, sangrou até morrer. Cometo o erro de virá-la e percebo que o homicídio teve pitadas de sadismo. A pequena tem, pela ordem, a orelha direita, a mão esquerda e o pé direito amputados, numa “lógica” seqüencial macambúzia. Minha visão fica turva... Impulsos elétricos disparam, e sinto as veias da minha cabeça nitidamente latejarem...o ímpeto de fúria assassina que me acomete só é obliterado ao perceber as náuseas do fotógrafo, às minhas costas. Levanto-me para ajudá-lo a se recompor e percebo, do outro lado da calçada, o motivo da ojeriza. Ali se encontra o corpo de uma mulher, cujas mãos foram cortadas (mas não decepadas). As marcas da violência sexual estão bem visíveis.

Durante a fase mais crítica da guerra, levavam à nossa enfermaria mulheres que haviam sido sodomizadas por até dez homens, muitas vezes simultaneamente. Chegavam urrando de dor, com hemorragias internas e os médicos utilizavam todo o estoque de morfina à disposição. Cirurgias de reconstrução vaginal eram rotineiras. Vi tudo isso com meus próprios olhos, e achei que estivesse me acostumando. No entanto, o quadro desta vez é indubitavelmente mais chocante. A moça, não mais que 25 anos, foi violentada à maneira típica que descrevi, com um detalhe: estava grávida. Aparentemente, os assassinos abriram-lhe a barriga, deixando um bebê natimorto preso às entranhas, pela placenta. Olho para os lados. Toda a companhia tenta demonstrar firmeza, mas os movimentos de maxilares protuberantes e intermitentes denunciando um choro travado nos traem. Os olhos ficam úmidos. Ninguém diz uma palavra.

Quando terminamos de desimpedir a via, escuto um ganido dentro de uma casa bombardeada. Dois soldados também. Dou o sinal e recebo a resposta de que terei cobertura. Entro nos escombros e eles me seguem. Depois da cena da mulher grávida, não há mais pico de adrenalina, e eu me sinto anestesiado. Acendo uma lanterna para afastar a penumbra e percebo, ao fundo do casebre, um pequeno corpo inerte, coberto de poeira, e um cachorro ao seu lado, deitado.

O animal levanta a cabeça e, ao ver minha aproximação, rosna ameaçadoramente. Meu colega atrás de mim faz a mira. Eu o impeço no ato. Chego mais perto, e ofereço a minha mão para que ele possa cheirá-la - nunca tive medo de cachorros. Ele parece compreender meu sinal de trégua, permitindo minha aproximação. Faço um afago e ele abaixa a cabeça, sem desgrudar os olhos de mim. Percebo que ele guarda uma criança, mas esta não foi amputada. Provavelmente morreu pela bomba. Tomo o pulso dela. Morta, realmente. Dou o sinal ao meu companheiro, que dá meia-volta. Tomo o cachorro em meus braços, sem que ele proteste, e o carrego para fora. Está ferido em uma das patas, mas não parece grave. Ignoro o aviso do sargento, de que o regulamento não permite animais de estimação na base. A presença do cãozinho é um sopro de vida na missão, e a resistência do oficial responsável se encerra definitivamente quando a companhia o cerca e os voluntários o mimam, oferecendo água e um pouco de comida.

Quando os motores ligam e prosseguimos, o animal imediatamente se põe a latir e ganir, olhando para os escombros que guardava há minutos. Ignoramos, mas o desespero aumenta e ele se torna irrequieto e verdadeiramente hostil. A lealdade daquele vira-lata comove a todos, e sem qualquer objeção, voltamos para buscar o corpo da criança que estava sob sua tutela e a levamos para a base, para ser enterrado.

Depois de pedir a um dos médicos que examine a pata do novo mascote, vou direto para o chuveiro, o meu local preferido de relaxamento desde que fui impedido de consumir álcool por conta dos antidepressivos...Por mais que esfregue, parece que o sangue não sai das minhas mãos...tento amenizar, cortando as unhas no limite do possível, mas sempre que olho novamente, elas me parecem rubras. Não sei como explicar, mas também parece não haver perfume que me livre do cheiro putrefato e carregado das ruas de Kigali, imersas em sangue, cinzas e lágrimas. Aparentemente, meu olfato desenvolveu uma percepção sensorial indelével; correlacionada aos pesadelos que vivi nestes últimos meses.

À noite, com o cachorro afundado no meu colo após o pequeno funeral organizado para seu ex-dono anônimo (no qual ele fez questão de participar), mal consigo participar da acalorada discussão que se formou ao meu redor, entre soldados, voluntários e ruandeses, sobre o nome que irá batizá-lo. A lembrança do pior dia da campanha me faz olhar para o animalzinho, aparentemente tão frágil, e que tantas lições nos ensinou hoje...lealdade...coragem...amor incondicional, seja lá qual fosse a etnia ou condição social e intelectual da criança que ele tão zelosamente guardava...Sinto calafrios ao me dar conta de que ele desperta, em mim, a  repugnante vergonha de ser quem - ou o quê - sou. Neste momento, eu me pego a invejar e admirar o cãozinho ruandês, tal qual um aprendiz o faz com seu mestre. “Renuncio à minha condição de homo sapiens, quero ser um cachorro”.

Levanto-me em seguida, deixando-o com uma das enfermeiras que ali estão, e me despeço para o ritual noturno diário, de remédios e choros escondidos debaixo do travesseiro. Eu apenas rezo para não sonhar... nem me tornar um morto-vivo.

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