O sistema de comunicação interno anunciou alguma coisa, e ela retirou os fones de ouvido para escutar. Os embarques da madrugada são uma experiência ímpar. Você teme cochilar com medo de perder o voo, mas também não consegue se prender a uma leitura qualquer justamente porque dá sono. Por esta mesma razão, músicas muito lentas do Ipod tem que ser passadas criteriosamente. O saguão vazio também não corroborava - a ausência do burburinho do dia e de pessoas passando só poderia encurralá-la em suas próprias reflexões.
Durante aquelas mais de quatro horas sentada, rememorou vários episódios recentes. Partia para o desconhecido, o inédito que sempre adiara. Rompera com sua rotina, seu trabalho, amigos e até com algumas de suas idiossincrasias - não todas, posto que o ser humano é um bicho de hábitos bizarros definidos por métodos sofisticados, os quais, por alguma razão, nos impelem a sermos indubitavelmente o que somos.
Ainda sentia a garganta travada, pois caíra na besteira de olhar para trás antes de adentrar o saguão de embarque. Pensou que se esse sentimento fosse a prova de sua vontade, estaria realmente em apuros. Seus pais obviamente não aprovavam aquela aventura, e manifestaram toda a sua contrariedade como puderam. Inútil. Ela era emancipada, e com dinheiro suficiente para bancar a viagem. Ela, por sua vez, tentou demovê-los da intenção de acompanhá-la até o aeroporto, sem sucesso. Tinha certeza de que não seria uma boa, e agora via que tinha razão.
Ainda sentia a garganta travada, pois caíra na besteira de olhar para trás antes de adentrar o saguão de embarque. Pensou que se esse sentimento fosse a prova de sua vontade, estaria realmente em apuros. Seus pais obviamente não aprovavam aquela aventura, e manifestaram toda a sua contrariedade como puderam. Inútil. Ela era emancipada, e com dinheiro suficiente para bancar a viagem. Ela, por sua vez, tentou demovê-los da intenção de acompanhá-la até o aeroporto, sem sucesso. Tinha certeza de que não seria uma boa, e agora via que tinha razão.
Tentou pensar em outra coisa, mas nada tinha passado tanto pela cabeça quanto o "cara ou coroa" de sua vida...o trabalho a engolira, seus amigos se distanciaram e ela se sentia só em sua crise existencial. Para completar, o homem a quem entregara o coração simplesmente ignorara suas súplicas covardes, embora sinceras. Enquanto via todas as amigas se casando, constituindo família e levando uma vida regrada aos padrões "normais", ela não sabia se de fato as invejava, ou simplesmente se sentia aliviada por não ter sido empurrada para aquela via de duas pistas estreitas e sem acostamento...e a dúvida que sempre lhe assaltara desde adolescente começou a fazer um ruído insuportável dentro da cabeça, a ponto de deixá-la surda em relação a tudo.
Já não via sentido em seu trabalho, no segundo MBA que iniciara, muito menos na sua tragicômica vida pessoal. E a famosa pergunta, a qual provavelmente qualquer um já se fez na vida, continuava martelando. Quando saía para caminhar nas tardes de domingo, sempre refletia se a vida era apenas aquilo mesmo. Pensou que talvez fosse muita arrogância almejar para si algo fora do script da realidade que a cercava, mas "na real", ela se sentia como se estivesse presa dentro da caverna do mito de Platão - um apuro só dela.
Daí a razão da sua fuga. Um lugar longe de todos, um recomeço individual, talvez. Mas não era uma escapada de luxo, e sim uma missão. Um trabalho voluntário em um país subdesenvolvido - ou emergente, na linguagem politicamente correta - na África. Se não fosse para crescer pessoalmente, de que adiantaria, afinal, aquele "pseudo-sabático"? Lá, longe de tudo, de todos e de muitas de suas idiossincrasias e cicatrizes mal curadas, poderia talvez sentir-se útil - se possível, para muitas pessoas. Como já não se sentia necessária para ninguém dentro do seu círculo, o custo de oportunidade era um elemento técnico reconfortante na sua decisão. Mas...
Daí a razão da sua fuga. Um lugar longe de todos, um recomeço individual, talvez. Mas não era uma escapada de luxo, e sim uma missão. Um trabalho voluntário em um país subdesenvolvido - ou emergente, na linguagem politicamente correta - na África. Se não fosse para crescer pessoalmente, de que adiantaria, afinal, aquele "pseudo-sabático"? Lá, longe de tudo, de todos e de muitas de suas idiossincrasias e cicatrizes mal curadas, poderia talvez sentir-se útil - se possível, para muitas pessoas. Como já não se sentia necessária para ninguém dentro do seu círculo, o custo de oportunidade era um elemento técnico reconfortante na sua decisão. Mas...
E aquele "mas" continuava teimando em beliscá-la. Estava completamente só na sala de espera, e embora estivesse razoavelmente adaptada a isso, inundava-lhe um sentimento de abandono, tal qual uma criança esquecida pela mãe dentro de um supermercado. Ficou a pensar se não tinha feito aquela opção por ter entrado em um beco sem saída, no qual ela mesma construíra. Se assim fosse, por outro lado, também teria sido ainda mais difícil seguir o seu chamado interior. Por que deixara de falar com suas amigas e amigos? Era culpa exclusiva dela? E elas, por que não a procuravam mais? Ou esse distanciamento é uma coisa normal, dessas que vêm com a idade? Talvez as pessoas tivessem mudado, ou talvez fosse apenas ela...
E ele? Por que nunca respondera? Levara tanto tempo para abrir o coração que talvez o trem já estivesse saído da estação antes que ela pudesse chegar lá. Não era bem a recusa dele que a marcara, mas simplesmente a indiferença. Agora, ela partia para um país desconhecido, sem saber, de fato, o que ele pensava acerca dos seus sentimentos. Aquilo sim, a remoía intensamente, e já há algum tempo. E se tivessem ficado juntos? "Obviamente não estaria aqui" - refletiu. Ela o amava. Dissera isso a ele. Contudo, meditou que talvez ainda não soubesse, realmente, o que aquela palavra - pequena por fora e grande por dentro, como diria o anúncio do carro - de fato significasse. Não seria o amor próprio uma condição sine qua non para conseguir amar outra pessoa? Como uma pessoa infeliz como ela poderia mostrar aquele brilho nos olhos que arrebata e conquista o mundo?
Olhou em volta, apoiou os cotovelos sobre os joelhos, olhando para baixo, enquanto sorria...Sim! No final das contas, tudo se resumia a isto, não? Buscar amor de uma nova maneira...mas...de que tipo? Pensou nos vários clichês que são ditos por aí. Não cairia nessa. Buscaria exatamente aquele amor que precisava para si. "Ao buscá-lo e moldá-lo para mim, provavelmente acabarei oferecendo outro espectro dele para as pessoas".
A esperança alojou-se em seu espírito. Levantou-se, já mais animada, procurando o cartão de embarque no bolso da jaqueta. Ao encaminhar-se à fila que já se formara ante o portão de entrada, olhou distraidamente para o corredor, cujo acesso restrito permitia apenas que passageiros com tickets e passaporte à mão entrassem. Um calafrio zapeou sua nuca. Parecia ter visto ele, de relance. Não podia acreditar! Forçou a vista... Não tinha certeza. Saiu da fila, na tentativa de enxergar mais de perto. Será??! Lembrou-se imediatamente dos filmes em que o "homem perfeito" irrompia o saguão atropelando tudo e todos, com um discurso magnificamente improvisado na ponta da língua, seguido do abraço e do beijo à la grand finale. Secretamente, naquele instante ela idealizou que isso pudesse ocorrer. A silhueta dele, ao longe, parecia realmente querer entrar de qualquer maneira. O coração rompeu aos saltos. Pensou em disparar pelo corredor, mas não estava segura o suficiente de que fosse ele realmente!
Quando por fim estava tomada a decisão de quebrar o recorde dos 400 metros rasos naquele saguão, no intervalo de um piscar de olhos, a funcionária da companhia aérea colocou a mão sobre o ombro dela:
- Moça, esta é a última chamada para embarque. Por favor, dirija-se ao portão.
E assim, o Brasil se distanciou...talvez ainda tentando recuperar o seu amor. A primeira lição surgira antes mesmo de decolar.