24 de ago. de 2010

Elegia Urbana

Hoje, ao acaso, dei uma chance a mim mesmo...
E me flagrei sorrindo, escondido, de canto! 
Tá, confesso...tinha um estoque de alegria sem prazo de vencimento
Minha alma desvencilhou-se dos grilhões do calabouço
Meu corpo, tal qual rêmora, veio no embalo
Saí do prédio, vitaminado...
Pulando, num só pulo, os cinco degraus da entrada
Atravessei o portão de olhos fechados, como numa propaganda,
absorvendo o calor matutino que furava densas nuvens
Passei pela calçada, cumprimentando desconhecidos 
A resposta das pessoas não apenas me surpreendeu, 
como também me comoveu. 
Houve muita troca boa de energia 
- até abraços inesperados, quem diria! 
E o mais incrível é que ainda era começo de dia!


Decidi caminhar um pouco mais, até minha padaria favorita
aquela a qual não me é possível frequentar todos os dias 
Menos por dinheiro, mais por preguiça, eu diria
Lá chegando, encontrei amigos dos velhos tempos
Misto-quente, pingados, sucos e muita alegria!
Conversas sobre futebol, empregos e casamentos
Fechamos aquele café com um brinde, na velha sintonia
promessas de uma nova reunião e sinceros sentimentos...
E o mais incrível é que ainda era começo de dia!


Entrando no edifício onde trabalho,
dei um bom dia gritado, como há muito não fazia
Os transeuntes que ali passavam, o riso não puderam conter
Ao entrar no elevador, cumprimentei todas as pessoas
as quais por algum motivo - ou por motivo algum
eu nunca cumprimentava;
dentre elas, a linda ruiva do escritório do vigésimo andar
Restando apenas nós dois para desembarcar
Pela primeira vez, ousei lhe falar e - surpresa!
Sem perceber, da minha boca saiu um convite para jantar
Quando ela disse sim, eu mal pude acreditar!
Entrei no escritório tão leve, que podiam me ver flutuar
E o mais incrível é que o dia ainda estava a começar! 


Animado com tudo que me acontecera até ali,
Decidi realizar tarefas sob corajosa iniciativa
Mandei para o inferno a rotina dos relatórios
Tentei ver as coisas sob outra perspectiva
Iniciei a revolução, simplesmente mudando a mesa de lado
Desengavetei projetos e os despejei à mesa do chefe
O medo da rejeição, desta vez ficou calado
Com um olhar de agradável surpresa, 
meu chefe prometeu analisar
A resposta veio, antes do expediente se encerrar
O chefe gostara, e muito: "Vamos implementar!
A partir de amanhã, há uma equipe para você coordenar!"
Saí do trabalho, 
a adrenalina era tanta que não deu pra esperar
Desci as escadas correndo, desde o vigésimo quinto andar
E o mais incrível: a linda ruiva estava lá embaixo, a me esperar


Pensei em levá-la ao mesmo restaurante
Onde levava as mulheres com quem saía
Era uma solução segura - e menos estressante 
Mas ela era especial, também era especial o dia
Decidi mais uma vez correr o risco
Levei-a ao meu canto favorito,
numa praia distante do centro, e perto do Divino
Um bar à beira da praia, simples e aconchegante
Uma mesa a dois, eu tão nervoso quanto um iniciante
Em uma troca de olhares, percebi que havia muito adiante
Por fim, o manto escuro da noite,
o crepúsculo agasalhou junto ao luar
Sob um teto estrelado, 
eu pedi à mesma lua para não ver a noite findar


Depois da refeição, eu a levei para um passeio
Pés desnudos, mãos unidas e pegadas na areia
Pairou uma afinidade intensa, do calibre dos meus devaneios
O primeiro beijo que lhe dei, foi de olhos abertos
Pois queria gravar os mínimos pormenores 
daquele instante tão meu (tão nosso)
A claridade deitou, intensa, naqueles olhos azuis
O planeta girou mais rápido, 
quando deixei minhas melhores palavras
escapulirem para dentro dos seus ouvidos...
Aquele ataque de sinceridade acendeu o rastilho,
do sentimento ímpio para um roçar desmedido
E antes que pretendesse acordar, o sol já surgia, tímido


Saudação calorosa na linha do horizonte, 
mente trôpega em busca de mais...
Se minha noite perfeita tivesse mais horas, 
mais e mais eu a preencheria 
Uma prancha de surfe no oceano, sob o holofote da lua cheia
Uma praça do alto da colina, um cochilo debaixo da palmeira
Preso em minhas divagações, não a percebi alheia...
Enquanto caminhávamos pelas pedras do cantão,
antes que pudesse perceber, ela puxou uma correia
Enlaçou-a em meu pescoço, puxou-me para perto do coração
Num abraço mortal, eu era uma mosca na teia:
"O amor nunca vai ao âmago, por onde campeia
seu rastro se esvai em promessas e desilusão
O tolo que nele se apega, segue o canto da sereia
A água o acolhe, a espuma o cega, o sal o incendeia"


Lá, onde as gaivotas se aninham para observar
Senti um canivete cravado em minha jugular
O mergulho final, golpe da misericórdia, 
Fim da linha, pomo da discórdia
Um último beijo, ela podia ir embora
pois que havia um mundo de oportunidades afora
Daquela visão turva, o horizonte avistei
O escarlate do céu, lentamente ia sendo suplantado 
"Vermelho como os cabelos dela", lembrei
E o mais incrível é que a noite mal havia terminado


*este poema foi inspirado na obra do mestre do rock macambúzio, Nick Cave